É impressionante a quantidade de artigos e programas correndo nos media sobre culinária, gastronomia e, claro, “drinks”. Obviamente que isto só acontece nos ditos países ricos onde as pessoas já têm quase tudo o que precisam na vida e então podem dedicar-se aos prazeres da carne. Tudo isto acontecendo ao lado de meio mundo a morrer de fome, que se rejubilaria se pudesse receber nem que fossem os restos do mundo rico…
Os programas TV que correm (ou correram recentemente) em Portugal sobre culinária são todos réplicas de sucessos de audiência televisiva em países ainda mais ricos. Por certo, todos os portugueses identificam de imediato os programas:
- Best Bakery, SIC
- Os Pesadelos de Ramsay, SIC Radical
- Hell’s Kitchen, SIC Radical
- Now Eat This!, SIC Mulher
- MasterChef Austrália, SIC Mulher
- Restaurant Takeover, SIC Mulher
- Pesadelo na Cozinha, TVI
- MasterChef Portugal, TVI
- MasterChef Júnior, TVI
- MasterChef Celebridades, TVI
- O Chef é Você, TVI
- História da Gastronomia Portuguesa, RTP
- A Minha Mãe Cozinha Melhor Que a Tua, RTP
Se a estes juntarmos agora todos os que correm em canais TV internacionais sobre a mesma temática, podemos concluir que a culinária está na moda. Assim como está na moda o Chef rigoroso, exigente, quase militarista e às vezes malcriado. Se pensarmos um pouco, muitos destes programas são trabalhados para adquirirem um formato de sucesso televisivo. O povo português gosta do Chef rigorosamente vestido como Chef e a proferir umas tantas caralhadas dirigidas a uns tantos tímidos cozinheiros e proprietários de restaurante. O povo português gosta do Chef com boa figura, bem apessoado, apropriadamente fardado e cheio de sapiência, lidando com mestria ferramentas topo de gama de cozinha, enquanto ensina como fazer pratos fabulásticos que o povo provavelmente nunca experimentará nas suas menos aprovisionadas cozinhas. O povo português rendeu-se definitivamente à “nouvelle cuisine” tão praticada pelos Chefs portugueses da atualidade. É essa, essa nouvelle cuisine a que eu me refiro brejeiramente assim a modos que “como pagar p’ra caralho comida que nem p’rá cova d’um dente dá” e que nasceu ali prós lados das madamas e dos lulus. Pois, mil perdões, mas eu sou um homem do povo. E homem do povo é useiro e vezeiro em impropérios…
Ganda nóia, chef…
O povo português não gosta de chefes[1]! Dizer mal do chefe é tão natural como sangue nos correr nas veias. É tipo “sei lá, aquele gajo é burro” uma meia-hora apenas do meliante trabalhador conhecer o seu chefe. E o meliante trabalhador sempre se considera capaz de melhor e mais que o seu chefe. E o seu chefe é o assunto mais frequente lá em casa com a família, no café a beber uma bejeka com os amigos ou na cama com a amante depois da queca consumada. É cultural, pronto. Neste caso, terei que reconhecer que é um comportamento cultural amplamente justificado. É que frequentemente em Portugal, os chefes disto e daquilo não passariam talvez em testes de recrutamento de moço-de-recados em empresas de países que vão uns quilómetros à nossa frente em todas as componentes da gestão da economia de um país. O trabalhador português sim, bem conceituado por ser subserviente e cumpridor, coisa que não acontece quando esse mesmo trabalhador trabalha em Portugal. Mas os nossos chefes deixam muito a desejar! Estilo capataz ou supervisor da sanzala, retrógados, comunicam à distância apenas e de olhos para baixo, exímios utilizadores de esquemas intimidatórios e chantagistas e, acima de tudo, fiéis graxistas de seus superiores. Em Portugal, todas as condições estão criadas para que os nossos chefes respeitem a tradição e reforçem o Princípio de Peter. Em Portugal, a promoção com base no mérito, em suma aquilo que se chama meritocracia, é apenas um bonito conto de fadas…
Não neguemos o valor dos nossos chefes. Se eles estão onde estão, de alguma forma o conseguiram. Tanto como, se nós não estamos onde eles estão, de alguma forma não o conseguimos. A crítica fácil ao nosso chefe, o maldizer constante, o deita abaixo sistemático a quem nos dirige, não nos torna melhores que eles. De facto, não sinto respeito nenhum pelo indivíduo que faz do seu chefe o tema central do seu cinismo, sarcasmo e chacota. Não é um ato inteligente, bem pelo contrário. Passarmos as nossas vidas em constante litígio espiritual com quem nos dirige é imbecilidade. Deixarmo-nos influenciar por um homem ou uma mulher que está onde nós não conseguimos estar é imbecilidade. Estou em crer que muito do stress que martiriza a maioria dos trabalhadores portugueses resulta da sua incapacidade de lidar com as suas chefias, os seus líderes, os seus coordenadores. Tenho testemunhado durante décadas que muita da amargura que assola os trabalhadores em Portugal se deve à sua extrema dificuldade em enquadrarem-se no seu posto de trabalho, lidarem com os seus colegas e, principalmente, com os seus chefes. E seria tão simples resolver esse problema se entendessemos, por exemplo, que um coxo vencedor de uma prova de 5000 metros com barreiras, não deixa de ser o campeão por ser coxo. Se venceu, alguma competência o fez vencer. Se os não-coxos perderam, perderam porque o coxo foi melhor que eles….
Portugal está cheio de “Yes Men”[2] e, em nome da igualdade de género, também cheio de “Yes Women”. A subserviência do português associada à sua sistemática e profundamente cultural necessidade de maldizer os outros, é um elemento canceroso na nossa economia nacional e também na economia pessoal. Enquanto não tivermos paz de espírito dificilmente seremos capazes de gerir com eficácia a nossa vida e isso torna-nos menos felizes. Está mais que provado que não é maldizendo o nosso chefe que o tornamos melhor chefe. Pura e simplesmente porque a tendência do chefe que é vítima da maldicência vinda dos seus subordinados é tornar-se um tudo nada pior para com o subordinado, para que este assim fique a saber que afinal quem manda ali é… o chefe. Não nos esqueçamos que um chefe chefia mas também é chefiado. E que a maldicência praticada pelos subordinados de um chefe é a mesma que esse chefe pratica com o chefe dele. E que desta forma entramos em esquemas do tipo “pescadinha de rabo na boca”, “efeito bola-de-neve”, “vingança serve-se fria” e outros que apenas contribuem para tornar a nossa vida um inferno. E nem estou a falar de nada parecido com “Pesadelo na Cozinha”, que não passa de ficção encenada para aumentar os níveis de audiência. Estou a falar de pesadelo na nossa vida real. Ficamos stressados, irritadiços, ansiosos. E ansiedade mata…
“Ganda nóia, chefe” é uma paródia antiga que me é muito querida. Não só porque vivi a representação do papel de chefe[3] e de chefiado[4] mas porque apreciava o programa televisivo onde ela nasceu. Gosto particularmente de ensinar o meu chefe, até porque muito frequentemente ele está menos preparado do que eu ou não sabe coisas que eu sei. Ensinar o nosso chefe é a nossa obrigação implícita porque assim colaboramos na evolução da empresa para a qual ambos trabalhamos e para a obtenção da nossa paz de espírito. Vivemos muito melhor se garantirmos tanto quanto possível a manutenção da nossa paz de espírito. E uma forma de o conseguirmos também passa por largar de vez essa imbecil atitude de pensar que tudo está errado… menos nós. Podemos mudar o mundo mas só aquele bocadinho que corresponde à nossa competência, ok? O resto? Deixemos à consideração da competência dos outros, porque há outros para lá de nós…
Que os deuses nos protejam da pandemia de ganda nóias que por aí prolifera…
- Agora é mesmo dos chefes que estou a falar. Os ‘chefes chefes’, do nosso departamento, da nossa repartição, dos escuteiros,…
- Termo inglês que designa homens subservientes que só dizem sim aos seus chefes pois pensam que essa é a forma de lhes agradar e assim obterem seus favores em troca.
- Prefiro dizer que fui líder. Ou coordenador…
- Subordinado, que é um termo que uso amiúde.