Apeteceu-me prestar a minha homenagem a este serviço nacional de saúde português que tem sido tão vítima de tantas críticas negativas ao longo dos últimos anos. E com razão, é um serviço que tem andado a correr e a tentar passar entre os pingos da chuva ácida que tanto se gera neste jardim à beira-mar plantado. Temos bons médicos, bons enfermeiros, bons técnicos de saúde e até nem se morre muito neste país, tendo em conta a quantidade de velhos que andamos por aqui…
Dizia-se há uns anos que ser padre não era uma profissão, era uma vocação. Resultado? Hoje há muito poucos padres por aí. Também diziam alguns líricos que ser professor não era uma profissão, era uma vocação. Resultado? Há falta de professores e muitos são os alunos por esse país fora que finalizam os seus anos letivos com disciplinas sem professor[1]. Alguns poetas desta vida também exercitaram umas teorias sobre o ser-se médico ou enfermeiro na base da profissão versus vocação. E hoje temos serviços de urgência por todo esse país fora a fecharem por não terem médicos suficientes. Facto? São suficientes mas hoje ninguém procura vocações…
Se nos disserem que o serviço nacional de saúde português não tem médicos que cheguem para as solicitações porque todos fugiram para o serviço privado de saúde, não critiquemos. Os médicos (e os enfermeiros) são gente. São homens e mulheres, querem dinheiro, querem viver bem, muito bem, extraordinariamente bem. Ou então “o bem” que eles acreditam que é o que deve ser! Querem dinheiro porque sem ele não sobrevivem e essa gente não quer apenas sobreviver. Essa gente não quer sobreviver com o estatuto de sem-abrigo, pedintes ou até de pobre-coitados cheios de boas intenções mas sem cheta! O nosso serviço nacional de saúde sofre de um mal que é estrutural, nacional, cultural e aparentemente sem cura. O nosso serviço nacional de saúde tem a saúde que todos temos, uns dias bem, outros assim-assim e muitos outros “ai jesus que vou desta para melhor”. Somos tugas e por isso aguentamo-nos sempre na base do improviso, de que, estupidamente, nos orgulhamos. Ou seja, na base do “hoje é assim, amanhã logo se verá”…
Mas onde peca o SNS? Bom, na minha condição de agnóstico crente e praticante, de facto ninguém peca mas a verdade é que o SNS falha e muito. Especialmente porque é o SNS e porque opera na área da saúde nacional? Não, especialmente porque é nacional e nós como ente nacional em geral pecamos muito por uma ausência evidente de senso nacional único, de vontade de prevalecer como nação e, pior que tudo, por uma horrenda ausência de orgulho nacional que muito nos ajudaria se fossemos capazes de o ter. Mas não temos! Cada um de nós vive para si mesmo e às vezes para os seus. Cada um de nós adora o deus ‘dinheiro’, deus único nesta religião dos últimos séculos que é o Capitalismo e que domina esta aldeia global que somos todos nós ou, pensámos nós, que seríamos todos nós. O nosso SNS é então vítima? Sim, vítima da nossa falta de nacionalismo efetivo que tem sido substituído por “sabe-se lá o quê” mas que já começamos a detetar porque as coisas estão a falhar…
O que se passa no SNS? Nada que não se passe em todas as outras atividades económicas e não-económicas nacionais. Dependemos de subsídios, sofremos portanto de subsídio-dependência. Dependemos da compreensão misericordiosa de terceiros. Dependemos da “intelligence” de outros. Com sorte e algum masoquismo dependemos do nosso próprio esforço. Para saber melhor o que se passa no SNS, nada melhor que frequentar o SNS como eu frequento (infelizmente!). Quando tudo corre bem, são todos ótimos, merecem ser aplaudidos ou medalhados[2]. Quando corre mal, o que é deveras frequente, a culpa é do ‘Sistema’. Sistema? Que sistema? O sistema! Mas qual sistema? O Sistema…
FIG — Cortesia de Walt Handelsman (cartoon adaptado a português).
Mas afinal que há de errado no SNS que também está errado no resto das instituições e empresas portuguesas? Acima de tudo o tuga é célere a culpar o Sistema. Isso, culpar o Sistema é uma coisa muito tuga e muito sistemática. Tão religiosamente seguida e respeitada que tal desiderato nos tem mantido na cauda da Europa há já algumas décadas. Nada estaria errado nisto se o mantermo-nos na cauda da Europa fosse o nosso objetivo mas estou convencido que não é. Tuga não gosta de estar na cauda e, pelo contrário, até gostaria de estar colocado num ‘top 5’ ou num ‘top 10’ do ranking europeu. Estamos, ao invés, no ‘bottom 3’ do ranking europeu e isso não faz de nós um povo feliz, pois não? Não! Faz de nós um povo eternamente lamurioso, choramingoso, cada vez mais enterrado no seu próprio fado. Ó gente da minha terra, que lamuriãncia é esta que nos mantém enterrados nesta miserância?
Sofremos de vários males típicos dos países periféricos desta Europa supostamente unida, de seu nome União Europeia. No SNS, tal como em muitas das nossas instituições ou empresas, praticamos:
- a falta de respeito pela correta relação fornecedor-cliente,
- a submissão ao improviso,
- o desrespeito total pelo planeamento,
- o desprezo por conceitos fundamentais como eficácia e eficiência e
- o não-profissionalismo crónico, se é que as pessoas sabem o que é profissionalismo!
Isto entre outras coisas muito nacionais e muito próprias de quem ocupa sistematicamente os últimos lugares do campeonato em que participa. Isto já era assim antes de 1979[3], ano em que foi criado o Serviço Nacional de Saúde português. Convenhamos, antes de 1979 até era pior, muito pior. Era tão mau que tal me fez aceitar pacificamente a miserabilidade dos serviços de países como o Brasil e Angola[4] quando por lá passei. Mas o Brasil e Angola não jogam no mesmo campeonato que Portugal e o mal dos outros não faz o meu bem. Aqui neste país, as pessoas são medianamente tratadas pelo serviço nacional de saúde, por vezes medíocramente. Aqui neste país, mais de 1 milhão de portugueses não têm médico assistente garantido pelo SNS. Aqui neste país, milhares de portugueses aguardam indefenidamente por consultas, exames e cirurgias. Aqui neste país, os enfermeiros formam-se e fogem para o estrangeiro porque cá ganham menos que uma empregada de limpeza. Aqui neste país, os médicos optam pelo serviço privado em deterimento do serviço nacional onde ganham 3 a 4 vezes menos. Aqui neste país, os técnicos de saúde são homens e mulheres que também reagem com um típico “não olhem para mim, a culpa é do governo” e desligam…
Esta é a minha homenagem ao SNS. A homenagem possível! Afinal, serviço que se aguenta moribundo mas em pé durante 40 anos merece ser homenageado. E também porque eu conheci o sistema de saúde português que existia antes do nascimento do SNS e, deixem-me insistir sem que desconfiem de mim, era muito, mas mesmo muito pior. Só que 40 anos daria para o SNS estar bem melhor do que está. Daria para nos centros de saúde os utentes serem tratados com alguma dignidade. Profissionalismo, eu diria! Só que em Portugal o profissionalismo é como a religião católica para muitos portugueses, é-se mas não se pratica. E por isso o nosso sistema de saúde é e tem sido como a canção nacional, um autêntico fado. E então as urgências fecham, o caos instala-se, atiram-se culpas em todas as direções e exige-se a demissão da ministra, a Marta Temido. Temido e também destemida porque muito pouca gente se aguentaria naquele lugar depois do que se tem passado nos últimos 3 anos. Ela é excelente? Claro que não, não existe excelência num país que ocupa o último lugar da Europa (supostamente) unida. Mas tem feito o possível e não desmoronou…
Como melhorar isto? Atacando pela raiz! Educação…
- Vi disto em Angola e nessa altura chamei-lhes “terceiro mundo”…
- 2022-mar-02 — Marcelo condecorou SNS com a mais elevada Ordem Honorífica no combate à Covid.
- Mais de 40 anos, já bem crescidinho, não? Foi o dr. António Arnaut que fez o despacho que consagrou o direito de todos ao acesso à rede das Caixas e a Universalidade do acesso à Saúde e redigiu a lei do SNS que viria a ser publicada em Setembro de 1979 no Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo
- Embora exista uma ´décalage` abismal entres estes dois!