Há verdades absolutas? Claro que há. Mas não se diz que tudo na vida é discutível? Sim, claro. Então não há verdades absolutas. Claro que há. As pessoas dizem que tudo é discutível porque não querem chegar a lado nenhum e refugiam-se na discussão para tentar fazer nascer a luz[1]. E todos sabemos que se há coisa que não gera luz, é a discussão…
A solução mais usual para tentar resolver problemas que não sabemos resolver é entrar em modo negação. E o que é o modo negação?[2] É o estado em que o nosso cérebro passa a considerar inexistente o que existe. E como se consegue isso? Nem todos conseguem mas os bem sucedidos fazem-no à custa de martelarem repetidas vezes a sua própria cabeça com frases tipo “isso não existe, é ficção”, “isso não é verdade, é miragem”, “não, não acredito, não pode ser verdade” e “não, isto não me está a contecer”. E a realidade é que o cérebro, orgão que nasceu para, entre muitas outras coisas, nos proteger dos perigos externos, cria de facto a realidade do que existindo, não existe.

Não ver o que se vê…
A normal apatia do cidadão pela prática do racismo, de repente passou a não existir. Manifestações de rua são por todo o lado realizadas por bandos de gente que acusam os governos das suas nações de cumplicidade com o racismo, ao permitirem o apartheid nas ações mais simples do quotidiano do cidadão. De repente toda a gente passou a ser ativista na defesa dos direitos dos negros, usa a frase “Black Lives Matter”[3] com orgulho, derrubam estátuas porque sim e outros atos de violência também porque sim. Deste modo pensam fazer desaparecer séculos de apatia total pelos atos de racismo no seu dia a dia. Nenhum cidadão aguenta o fardo de séculos de culpa! Por isso entra em modo de negação em relação ao seu habitual desprezo por um grave problema que se arrasta há milénios. Derrubar uma estátua que representa alguém que nem sequer sabem quem verdadeiramente é, fá-los acreditar que não são nem nunca foram cúmplices deste mal. É uma das possíveis formas de entrar em negação…
É usual adotarmos uma atitude de negação em relação aos problemas diários. A própria frase “esqueçam, resolvo isso quando isso for realmente um problema” é um sintoma de negação. Não fora a negação e todos os seres humanos sucumbiriam cedo nas suas vidas ao peso das dificuldades diárias. A negação ajuda-nos a irmos passando os dias de modo que possamos dormir as noites. Porque quando assim não é, dormimos mal. E dormimos mal porque o nosso cérebro está demasiado ocupado com coisas de dificil arrumação[4]. Por isso, defendo o uso moderado da negação. Eu pratico-a desde que a vida me levou a ter que me conhecer. Foi fácil, nessa idade, criar mecanismos próprios de proteção própria treinando o meu cérebro para não processar certas realidades, assumindo que elas não existem. É preciso treino mas não muito. Se não fosse o poder da negação, passaríamos a vida a ter que ver o nosso próprio nariz, essa protuberância que nos sai pelo rosto fora mesmo à frente dos nossos olhos. Nós não vemos o nosso próprio nariz e isso não é um problema[5]. Esta e outras negações são úteis e saudáveis…
Os povos que, na sua maioria, vivem ali pertinho do limiar da pobreza ou abaixo dele, são campeões em negação. Essa é uma prática de negação massiva por esse mundo fora e muito conveniente aos povos desenvolvidos ou, permitam-me a incorreção política, aos povos abastadamente ricos. Já passei por algumas nações onde a miséria se quantifica na ordem dos 60 a 70% da sua população. Que quer isto dizer? Que apenas 40 ou 30% dessas populações são gente que vive como gente. Os outros chegam a viver pior que animais, sejam eles domésticos ou selvagens. A negação é uma arma poderosa para os poderosos deste mundo. Porque pontualmente tive que viver nesses mundos, fui obrigado por questões de sobrevivência a entrar em modo negação também. Teve que ser, em nome da continuação do meu bem estar. Por exemplo, uma das frases que muito usei no reforço do meu estado de negação durante um período que vivi no Brasil, onde a população miserável rondava os 35%, era a tradução verbal do que os brasileiros mostram ao mundo: “com tanto samba, futebol e carnaval, só podem mesmo serem felizes”! Alguém conhece um brasileiro infeliz? Não, todos estão sintonizados na banda do legal, gostoso e “amo demais”. Tivessemos nós, portugueses, a capacidade de negação dos brasileiros e não seríamos famosos pela nossa tristeza, o nosso constante carpir de mágoas e o elevado consumo de anti-depressivos…
A pandemia COVID-19 de repente passou a não existir. Manifestações de rua acontecem por todo o lado, organizadas por bandos de gente que acusam os governos das suas nações de inventar esta pandemia para controlar os cidadãos, lhes extorquirem liberdades e criarem manobras de diversão que as desviam dos seus problemas efetivos. Curioso, não é? Já tive a oportunidade de afirmar várias vezes que o Coronavírus ataca essencialmente o cérebro das pessoas, mais do que os pulmões ou outro qualquer orgão. E só isso explica como de repente toda a gente esqueceu as cidades desertas, os hospitais a abarrotar de gente com uma doença que quase ninguém conhecia, os pedidos de ajuda vindos de todo o lado, as encomendas de milhões de equipamentos de proteção pelos quais ninguém punha as mãos no fogo pela sua eficácia e, o mais impactante, as filas de mortos que aguardavam sua vez para serem enterrados que nem lixo tóxico. Acreditar que toda esta cena de dimensão mundial não existiu e se resume apenas a uma manobra aproveitacionista, é um claro caso de negação levada ao extremo da imbecilidade. Um nível de negação perigoso, por parecer já resultado de um estado patológico de quem o pratica. Mas os negacionistas são normalmente incapazes de analisar friamente o impacto das suas negações pois apenas querem “resolver” quanto antes aquele específico problema que os massacra diariamente. E nem se apercebem dos demais problemas que criam ao tentarem resolver pela negação aquele problema que os martiriza. Como a vida, em geral, não é apenas um específico problema mas muitos específicos problemas em simultãneo, não falta gente por aí que vive num permanente estado de negação. Alguns resistem uma vida inteira nesse estado. Outros nem por isso…
Que os deuses não neguem a sua proteção divina a quem dela carece…
- Velho provérbio português “Da discussão nasce a luz”. Ver em Provérbios Portugueses.
- Ver em Negação (psicologia).
- Eu diria que não, não são as vidas dos negros que importam. Eu diria que qualquer vida importa, independentemente da cor. Por isso bastaria dizer “Lives Matter”…
- Claro que há outras causas para a insónia, que não somente a nossa capacidade de não resolvermos os nossos problemas.
- No entanto basta aparecer uma verruga no topo para logo passarmos a “ver” o nosso próprio nariz.