… E enquanto se imagina que nada será como dantes, cada gesto é um claro sinal de que tudo será como sempre foi. Porque ninguém está mesmo empenhado em abdicar do seu Eu. E o seu Eu toma as formas do que se prevê mais adequado para ainda mais engrandecer o seu já de si ampliado Eu. E tantas são as metamorfoses ao longo da existência que o Eu não mais é capaz de se manter coerente, único, identificável. E os Eus assim se vão tornando criaturas monstruosas. E para assim se manterem vão sugando os ingénuos Eus dominados pela circunspecção. E eis que um dia a monstruosidade passa a ser o belo. O atraente. O must. O brutal. E na procura de mais beleza e atração, o Eu mais se transmuta. E de tanta ânsia de engrandecer, caminham os Eus firme e orgulhosamente pela passerelle da existência. Vaidosos. Orgulhosos. Altivos. Amaneirados. Ufanos. Pressa. Depressa. Passo lesto, porque o tempo urge e na ribalta não há espaço para todos. E de todos poucos serão os abençoados com os holofotes. E não se olha quem vai ficando para trás. Quem teima em não transmutar, permanecer circunspecto, inerte, hesitante, perdido entre aromas e sabores estranhos. Quem já era, quem não é, quem não consegue ser. E o sangue de quem é sugado é energia para quem suga. E as suas lágrimas são o tempero nos lautos manjares desses Eus transmutados e assim tornados criaturas montruosas.
E eis que um dia a monstruosidade passa a ser o belo. E todos os Eus vão querer ser monstros. E então terão atingido o novo normal. E fecharão os anormais, os incapazes de se prostrarem perante a nova beleza, a nova excelência. Ou quererão transmutá-los. Ou reprocessá-los. Quem sabe, torná-los Eus em extinção…[1]
—
The scent grows richer, he knows he must be near,
He finds a long passageway lit by chandelier.
Each step he takes, the perfumes change
From familiar fragrance to flavors strange.
A magnificent chamber meets his eye.
Inside, a long rose-water pool is shrouded by fine mist.
Stepping in the moist silence,
with a warm breeze he’s gently kissed.
Thinking he is quite alone,
He enters the room, as if it were his own,
But ripples on the sweet pink water
Reveal some company unthought of
Rael stands astonished doubting his sight,
Struck by beauty, gripped in fright;
Three vermilion snakes of female face,
The smallest motion, filled with grace.
Muted melodies fill the echoing hall,
But there is no sign of warning in the siren’s call:
“Rael welcome, we are the Lamia of the pool.
We have been waiting for our waters to bring you cool.”
Putting fear beside him, he trusts in beauty blind,
He slips into the nectar, leaving his shredded clothes behind.
“With their tongues, they test, taste and judge all that is mine.
They move in a series of caresses
That glide up and down my spine.
As they nibble the fruit of my flesh, I feel no pain,
Only a magic that a name would stain.
With the first drop of my blood in their veins
Their faces are convulsed in mortal pains.
The fairest cries, “We all have loved you, Rael’.
Each empty snakelike body floats,
Silent sorrow in empty boats.
A sickly sourness fills the room,
The bitter harvest of a dying bloom.
Looking for motion I know I will not find,
I stroke the curls now turning pale, in which I’d lain entwined
“O Lamia, your flesh that remains I will take as my food”
It is the scent of garlic that lingers on my chocolate fingers.
Looking behind me, the water turns icy blue,
The lights are dimmed and once again the stage is set for you.
—
O perfume cresce enriquecido, ele sabe que deve estar próximo,
Ele encontra um longo corredor iluminado por lustres.
Cada passo que ele dá, o aroma muda
De fragrância familiar a sabores estranhos.
Um sala magnífica depara-se a seus olhos.
Lá dentro, uma longa piscina de água rosada envolta por fina névoa.
Pisando no silêncio húmido,
sentiu uma brisa quente que ele suavemente beijou.
Pensando estar totalmente sozinho,
Ele entra na sala, como se fosse a sua própria,
Mas ondulações na água cor-de-rosa doce
Revelam alguma presença imprevista.
Rael surpreende-se, duvidando da sua visão,
Impressionado pela beleza, agarrado pelo susto;
Três cobras vermelhão com rosto feminino,
O menor dos movimentos, pleno de graça.
Melodias suaves enchem o ressonante salão,
Mas não há sinal de advertência no soar da sirene:
“Rael bem-vindo, nós somos a Lámia da piscina.
Temos estado à espera que as nossas águas te refresquem.”
Dominado pelo medo, ele confia na beleza cega,
E desliza para o néctar, deixando as suas roupas para trás.
“Com suas línguas, elas testam, provam e ajuizam tudo o que é meu.
Elas iniciam uma série de carícias
Deslizando acima e abaixo pela minha espinha.
Enquanto mordem o suco da minha carne, não sinto alguma dor,
Apenas uma magia que um nome poderia manchar.
Com a primeira gota do meu sangue nas suas veias
Os seus rostos convulsionam-se em dores mortais.
A mais bela grita, “Todas te amámos, Rael”.
Cada corpo vazio flutua que nem serpentes,
Silenciosa mágoa em barcos vazios.
Uma acidez doentia enche a sala,
A colheita amarga de um resplandecer moribundo.
Olhando para gestos que sei não ir encontrar,
Acaricio os caracóis agora empalidecendo, nos quais me tinha entrelaçado
“Ó Lamia, a carne que te resta tomá-la-ei como meu alimento”
É o cheiro de alho que perdura nos meus dedos de chocolate.
Olhando para trás, a água se torna azul gelado,
As luzes se apagam e uma vez mais o palco está pronto para ti.
- E no intervalo entre o início e o fim deste artigo deixámos morrer mais uns quantos velhadas na nossa terra. Portugal a rejuvenescer…
- Impressionante a proximidade da execução vocal e instrumental desta banda italiana que decidiu revisitar Genesis em tempo de pandemia. E logo com um tema espetacular como este, The Lamia, cheio de alucinação e bem ao estilo da malta roqueira dos anos 70. Neste cover, a banda contou com a participação de John Hackett (flauta), irmão do guitarrista Steve Hackett, que chegou a fazer parte da banda Genesis.
- O ficheiro de legendas foi criado com a aplicação gratuita Subtitles Edit que pode obter aqui.