Foi bem no final de 2020, um annus horribilis que não é para esquecer, que tiveram lugar alguns eventos que muitos tomam como reforço de uma esperança que já desfalecia. Num mundo onde o certo deu lugar ao incerto, a certeza deu lugar à dúvida e a arrogância deu lugar ao que de facto o ser humano é, a ciência superou-se e inventou em menos de um ano o que noutras demandas, noutras eras, levou vários anos a criar. E a esperança tomou lugar ao lado da dúvida. A esperança de quem quer sobreviver e a dúvida de quem nunca viu tanto em tão pouco tempo acontecer já que, diz a sabedoria popular, quando a esmola é grande, o pobre desconfia…
A vacina contra o Coronavírus ficará na história da humanidade. Caso único de colaboração entre cientistas de todo o mundo, dizem alguns. Parece que sim! Parece que as mentes brilhantes que se movem nestes terrenos da infecciologia e da virologia tiveram autorização para cooperarem contra o inimigo comum. E por isso, por ter havido essa tão rara cooperação global, se conseguiu este recorde na criação e produção de uma vacina na qual todos depositam a sua esperança, tendo em vista o regresso ao normal, à vida que era antes, aquilo que nós humanos eramos antes de o perigo ter descido por aí abaixo, vindo da China do nosso descontentamento. O problema é esse mesmo, todos depositam a sua esperança tendo em vista o regresso ao normal, à vida que era antes. É que voltar à vida que era antes é o mesmo que dizer que este pandémico ano 2020 de nada serviu, com ele nada aprendemos. Voltar ao que era antes é a antítese de nada será como dantes, que muitos apregoaram. E sendo assim, eu volto a afirmar que a humanidade nada está a aprender com a pandemia COVID-19. Nada, mesmo…
As claras evidências de que em Portugal continuamos a ser os senhores do desenrasca e a desprezar o planeamento metódico, voltaram a acontecer também na aquisição, distribuição e aplicação da vacina anti-coronavírus. É grave? Não, não me parece. Apesar da forma algo atabalhoada como normalmente as coisas acontecem em Portugal, o facto é que elas acontecem. E nem aquele despique muito bairrista entre PSP[1] e GNR[2] para escoltar os camiões de entrega das vacinas pode ser tomado como algo de grave. No máximo será caricato. Mas caricatos são os Portugueses há séculos. Isso, essa é que é a parte grave, continuamos a ser caricatos. Pequeninos. Mesquinhos. E continuamos a tapar o sol com a peneira. E a fazer de conta. E a tapar buracos. E a fazer aquilo em que somos bons: a inventar quando não sabemos realmente o que fazer. Inventar até é bom, sinal de criatividade. Pena é que sejamos muito fracos a inventar…
Uma vacina não é uma cura. Organizemos o pensamento, vá. A vacina é um processo preventivo que, a correr bem, nos livra de ficarmos doentes por causa do vírus para a qual ela foi criada. Para além disso, ainda ninguém sabe qual a duração da proteção que esta vacina oferece ao corpo humano. Porém, é um grande passo para humanidade. É uma forma de ganhar tempo e assim se aprofundarem os conhecimentos que não podem claramente ser assim tão profundos ao fim de tão pouco tempo. Ter medo de algo tão depressa conseguido é natural. Até porque sabemos que muitas vezes as vacinas provocam reações nefastas em certos organismos. Mas ter medo é salutar porque o medo é uma forma de proteção. E foi bom para todos nós testemunhar a confiança como centenas de profissionias de saúde em Portugal aderiram à vacina. É altamente motivador ver outros a superarem o medo e a partirem para a luta. Também é reconfortante serem outros a experimentarem a novidade e dessa forma termos tempo para observar as consequências. O processo ainda só agora começou e prevê-se ser longo. Com sorte, poderemos estar juntos despreocupadamente a comer as rabanadas no próximo Natal e a fazer umas tainadas no próximo reveillon…
O provérbio “A esperança é a última a morrer” é uma frase motivacional apenas. Na maioria dos casos a esperança morre bem mais cedo do que quem espera. É certo que quando desejamos algo intensamente desenvolvemos esse sentimento forte de que vamos conseguir realizar esse desejo. Por outro lado, acreditamos piamente que enquanto há vida há esperança[3]. E então para nos mantermos vivos temos que manter viva a esperança porque é nela que vamos buscar as forças que nos permitem continuar a acreditar. Estamos vivos, temos esperança. Temos esperança para nos mantermos vivos. Esta é a essência mais pura do ser humano. Um ciclo vicioso que vamos alimentando ao longo da vida com mais ou menos fé. Com mais ou menos oscilações. Este é o lado mais belo do ser humano, só visível quando nos encontramos com as nossas fragilidades. Essa fragilidades que nos esforçamos por esconder quando, erradamente, acreditamos ser mais do que aquilo que somos. E então basta uma insignificante bactéria, um mar que um dia se levanta mal disposto ou uma terra que um dia treme um pouco mais intensamente que o habitual para nos trazer de volta à nossa verdadeira dimensão. A dimensão de um ser tendencialmente vaidoso e petulante, tão capaz de realizar obras mastodônticas como incapaz de viver em harmonia com os seus pares.
Ganha a batalha da COVID-19, assim espero, Portugal só ganharia se não voltasse ao antes. Se tivessemos a capacidade de finalmente perceber o quão somos dependentes da nossa preguiça mental. O quão somos apegados à nossa ineficiência. O quão o nosso orgulho individual nos torna avessos à criação e manutenção de um orgulho nacional que nos torne minimamente auto-suficientes. Um orgulho nacional que nos permita viver em harmonia com nós próprios, sem os constantes sobressaltos que nos assolam há séculos e nos impelem para a mendicidade. Um orgulho nacional que nos permita ter vergonha de deixar como herança aos nossos filhos um país endividado para mais umas quantas gerações vindouras que sempre precisarão da solidariedade dos outros. Um orgulho nacional que faça de nós um povo merecedor do respeito e da admiração do resto do mundo. Um orgulho nacional que nos torne um povo com dignidade nacional. Um orgulho nacional que nos permita adormecer ao fim de cada dia com a plena satisfação do dever cumprido à custa do nosso próprio esforço…
Tenhamos a esperança que os deuses nos ajudem a tornar 2021 um annus mirabilis…
- Polícia de Segurança Pública.
- Guarda Nacional Republicana.
- Outro porvérbio português. Ver mais aqui.