Disfunção Moral

Neste tão pequeno jardim à beira-mar plantado, brotam desde há muito pequenas criaturas, outrora tidas como grandes, cravejadas de enormes superegos que tornaram este território, a descair para o Atlântico, uma verdadeira fonte de fadistas…

Claro que ninguém me leva a sério quando digo que o maior problema de Portugal é ter o fado como canção nacional. E o problema consideravelmente se avolumou quando a dita canção nacional foi tornada Património Cultural Imaterial da Humanidade[1]. Mas o fado é apenas a tradução em sons mais ou menos organizados em melodias de uma terrível doença que herdamos de alguém, talvez de Viriato e seus descendentes: a disfunção moral! Ou seja, somos todos portadores de um moralismo exacerbado oriundo da frequência obrigatória, desde tenra idade, de uma velha escola orientada pelo clero, com certeza, onde a luta do bem contra o mal é disciplina nuclear. O problema é que é apenas uma disciplina teórica pois nem tanto assim do que se aprende neste país sobre moralidade se repercute efetivamente na nossa prática diária de relacionamento com o próximo. Aliás, portuga tem um habitual ar de boa pessoa, simpático, hospitaleiro mas com extrema dificuldade em efetivamente se relacionar com o próximo, sendo por isso muito propício a preferir o longínquo. Não admira pois que durante décadas tivessemos tido o estrangeiro[2] em mais alta estima que o nacional e que tivessemos emigrado tanto. E ainda não nos livrámos totalmente dessa herança… Pesada, diga-se!

Com tantas aparições marianas e homilias domingueiras, não admira que o moralismo invada a mente do português comum. Sendo que a educação em Portugal cabe primordialmente à mãe, e que muito tarde ou nunca nos desligamos dela, poder-se-á concluir que somos moralistas por causa das mulheres. Sendo que a maioria dos docentes nas nossas escolas é do género feminino, poder-se-á consolidar ainda mais a teoria que diz[3] que a nossa vértebra moralista é essencialmente de substrato feminino. Mas todos sabemos como mulher é sobretudo emocional e, por isso mesmo, a componente prática do moralismo que nos carateriza tem falhado amiúde. O lado prático e o pragmatismo não são uma componente forte do perfil psicológico da mulher e daí resulta a nossa extrema dificuldade em pôr em prática o nosso moralismo. Bom, não é bem o meu caso porque obras do acaso fizeram de mim um ser escandalosamente materialista e pragmático deixando para o moralismo muito pouco espaço, caraterística que, por acaso, ainda se mantém firme no meu ocaso. Poder-se-ia eventualmente extrair daqui a ideia de que serei imoral ou não-moral mas não, de facto, desde muito cedo que a moral é para mim um não-assunto e isso não me torna necessariamente imoral. Apenas, como objetor de consciência convicto, recuso-me a pactuar com cenas execráveis de uso-fruto da miserabilidade do ser humano…

O moralismo é também consequência da profunda religiosidade que carateriza os portugueses, embora aqui possamos questionar o que terá nascido primeiro: o moralismo ou a religiosidade? O moralismo é o exercício da moralidade no sentido de incutir moral nos outros. Tenho em mim a perfeita convicção de que a religiosidade é mãe do moralismo. Mais uma vez temos aqui a ação predominante da mulher, ou fêmea se preferirem, na moral individual e nacional dos portugueses pois “religiosidade” é palavra sempre precedida do artigo feminino “a”. E embora a religiosidade tenha sido arquitetada por homens na sua componente folclórica ao longo dos séculos, não devemos esquecer que quem nos gera são mulheres e quem se encarrega de incutir em nós as bases do nosso perfil comportamental são as mesmas. Por isso, a mulher é a origem da religiosidade a qual, por sua vez, é progenitora da moralidade, leia-se, do superego. E a moralidade é o conjunto dos valores que resultam da moral. E a moral é o conjunto dos valores do bem contra os valores do mal, conjunto esse bem enraizado na cultura deste povo deambulando por este território a descair para o Atlântico, uma inesgotável fonte de fadistas…

O moralismo não é a prática da cidadania em cumprimento conforme. A isso chamar-se-ia disciplina. O moralismo é a teoria e a prática da luta do bem contra o mal. É a militância na propagação da moralidade. É a evangelização, ou tentativa, dos imorais e dos não-morais. No nosso lar. Na nossa cama. Na nossa escola. No nosso recreio. No nosso clube. No nosso posto de trabalho. No nosso café. Na nossa praia. Na nossa igreja… E aqui reside o busílis de uma questão que daria muito pano para fazer muitas mangas, curtas ou compridas, tanto faz: o bem é, tanto quanto o mal, um personagem de uma longa história aos quadradinhos. Tanto quanto o é a Bíblia, um livro que fui lendo ao longo da minha adolescência. O bem é tão grande ou tão pequeno quanto quem está a pensar nele ou a usá-lo a favor ou contra. Pois aí está, para piorar a cena, quantas vezes ao longo da vida usamos o bem contra alguém? E o mal a favor de alguém? O discernimento nos nossos atos fica assim mais difícil quando logo à partida o que defendemos e o que atacamos não está tão claro quanto isso nos nossos espíritos. O discernimento torna-se ainda mais turvo quando os que amamos e os que nos amam nos fazem hesitar nos conceitos adquiridos e na sua aplicação nos movimentos que a vida nos força a executar. E o discernimento aos 5 anos tem uma dimensão, aos 25 outra, aos 65 e finalmente, para quem lá chega, aos 75 outra ainda…


O Id, o Ego e o Superego foram todos passear…[4]

O superego nasce bem cedo na vida de cada um de nós e resulta do facto de que somos simples joguetes nas mãos ou nos pés de quem nos circunda e que sobre nós pode e quer exercer alguma influência. O nosso superego poderá por isso ser algo que nos poderá ferir profundamente ao longo da nossa vida, nos poderá fazer ferir outros e, pior de tudo, agravado pelo facto de que frequentemente nem nos damos conta que estamos a ferir quando estamos a ferir. Por isso, a dominância de uma mãe decidida secundada por um pai firme é fundamental nessa fase em que nós, simples criaturas em formação, absorvemos tudo o que nos dão para absorver e que se vai contrapor ao nosso Id, que é de natureza animal e cruel. E o que nos dão para absorver afim de moldar o nosso ego é a moral. E da moral esperam que a transformemos em moralidade, e pela sua praticãncia procedamos à sua divulgação através de ações moralistas, fazendo assim prevalecer o moralismo. Só que português é em geral muito boa pessoa mas, nestas coisas elaboradas que exigem focagem, muito fraco. Ora vejamos! Dizemo-nos católicos não-praticantes[5]. Abandonamos os nossos velhos por aí, deixamo-los morrer e, por descarga de consciência, atiramos para cima de lares e hospitais as culpas que não queremos assumir. Praticamos violência sobre quem mais amamos, de pais para filhos, de filhos para pais e de conjuge para conjuge. Abandonamos os nossos recém-nascidos em contentores do lixo num perfeito desrespeito pelas mais elementares regras da separação de lixos. Adoramos cães e gatos enquanto atingimos o orgasmo por cada bandarilha espetada com furor num touro bravo. Deixamos por aí à deriva os sem-abrigo, alguns deles recentemente assim tornados por terem sido vítimas de uma pandemia democrática, pois estamos demasiado ocupados a escolher as sapatilhas mais adequadas para usar na sempre exigente peregrinação a Fátima, onde esperamos que Maria “A Virgem” faça reset aos nossos pecados ou nos salve de um qualquer drama. Somos assíduos frequentadores das feiras de vaidades, onde ostensivamente exibimos o que temos e o que não temos e connosco arrastamos quem nos está sentimentalmente ligado, mesmo sem o seu consentimento. Tudo isto com a mais elevada moral lusitana latejando até doer nas nossas cabeças…

E o que leva os portugueses a serem altamente moralistas mas desconhecedores de como se pratica a moralidade? Não sei! Ultrapassa largamente a minha razoavelmente boa capacidade de divagar, às vezes devanear, e por isso não sigo por aí, pelo caminho da busca da origem da nossa disfunção moral. O que tenho constatado é que tal disfunção nos tornou um povo excessivamente mesquinho, contraditório, inconsequente e por regra muito dado às cores preto e cinzento[6]. Se a vida fosse uma escala cromática, o portuga comum mover-se-ia apenas na escala dos cinzentos, com uns saltos esporádicos aos limites, o branco ou o preto. E isso deve-se ao tremendo peso do seu próprio superego criado e formado por mulheres com o conluio de homens. Porque isto de manter durante uma vida inteira uma luta entre o bem e o mal quando ambos, bem e mal, são coisas que amiúde nem sabemos o que são ou como são… é dose! É demasiada areia para as nossas camionetas, não faz parte da nossa praia e está muito para além da nossa adoração a reality shows ou telenovelas na TV com as suas profundidades filosóficas, essas sim, que nos tiram o sono amiúde…

Porém, não há cura á vista para esta doença! Para isso seria preciso, em primeira instância, que fosse reconhecida como tal. Mas estando tão entranhada assim na nossa tradição e cultura popular, dificilmente iriamos aplicar a cura mesmo que tivessemos o engenho e a arte de a descobrir…

  1. Em Novembro de 2011. Divaguei sobre esse evento na versão inglesa deste blog. Pode ler aqui.
  2. Faz-me lembrar O Estrangeiro (livro) de Albert Camus que, diga-se, adorei ler!
  3. Digo eu…
  4. Imagem é uma cortesia de Surreal32.
  5. Que sacrilégio! Eu que sempre pensei que o catolicismo assentava essencialmente na prática do ser católico…
  6. Nem me atrevo a entrar no território da crominância e da luminãncia para não me perder entre os que discutem se, quer preto ou cinzento, são uma cor!

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