Deixa pra Lá…

Não que eu seja fã dos Beatles nem porque ache a música “Let It Be” muito boa, mas apenas porque decidi hoje dedicar uma prosa ao estereótipo social que chamo de pessoas “deixa pra lá”.

Cada um de nós, animais humanos transeúntes nesta grande bola azul, é sempre um bocadinho “deixa pra lá”, um bocadinho “na tou pra me chatear” ou um bocadinho “não é problema meu”. O “deixa pra lá” ou o “laissez faire[1] é amiúde a forma como muitas pessoas pensam que é a melhor maneira de sobreviverem neste mundo exigente que aparece a muitos como um ambiente hostil. De facto, esta atitude “deixa pra lá” é tão usual que até Sir Paul McCartney a eternizou na sua música “Let It Be”. Esta canção dos Beatles aparece em consequência de momentos menos bons vividos por Paul[2] em que ele sonha com a sua mãe, Mary[3], a dar-lhe bons conselhos, sendo que o que mais se repete é precisamente o deixa pra lá, deixa rolar, deixa acontecer, tudo irá melhorar…


Aperto no peito…

O senso comum leva-nos a aprender que o sofrimento humano concentra-se no peito! É no peito que reside o coração, é ao coração que vão parar os ricochetes dos mais fortes sentimentos dos seres humanos[4]. Para as pessoas, principalmente mulheres, é lá que vão desaguar coisas como paixão, amor, amizade, ansiedade, angústia, frustração, deceção e medo. Quando as coisas vão mal é portanto vulgar sentir-se um aperto no peito. E o aperto no peito pode ir aumentando. Dia após dia. Mês após mês. Ano após ano. E por vezes o coração não resiste. É a rutura! E então temos as pessoas de coração partido (broken-hearted people). Tudo porque não ligaram nunca às palavras sábias “deixa pra lá”. Porque se envolveram demais. Se expuseram demais. Se esforçaram demais. Mais do que permitia a força humana…

Neste jogo predador/presa que é a vida, existem as pessoas tipo “grampo” e as pessoas tipo “deixa pra lá”. Sim, não faltam aqueles humanos que são os causadores dos nossos apertos no peito, os homens ou mulheres tipo “grampo” que vão apertando o peito da sua vítima. Lentamente, às vezes. Rapidamente, outras vezes. Controlando a pressão aqui e ali porque o objetivo é manter a vítima bem apertadinha mas viva tanto quanto possível. Apertando, às vezes. Aliviando, outras vezes. São uns sádicos, não são? Uns fazem-no por prazer, outros fazem-no porque lhes pagam. No entanto, pior do que sentir o peito apertado por uma qualquer outra pessoa que ou é paga para o fazer ou sente prazer em fazê-lo, é senti-lo apertado por nós mesmos, não é? A sério! Quantas vezes somos nós próprios a colocar o grampo tipo-C[5] no nosso peito e a apertá-lo? E continuamos a apertar. E a apertar… E mesmo quando sentimos já dificuldade em respirar continuamos a apertar! Masoquismo? Não! Subserviência. A sério…

A gestão da nossa integração no nosso próprio círculo social é frequentemente complexa. Decidir sobre qual é o ramo da Grande Árvore[6] que pode ser usado para nos sentarmos ou então qual é o momento certo para mudarmos o traseiro de ramo em ramo, não é fácil. O facto é que, mais cedo ou mais tarde, muitos humanos (mas mesmo muitos) se identificam com a franzina menininha da foto aqui acima. Um aperto no peito! Bom, se esta é uma situação que acontece apenas algumas vezes na vida, isso até é aceitável pois não somos mais do que animais. Humanos mas animais. Em casos esporádicos de aperto é só preciso descobrir algumas soluções para reduzir a dor. Um qualquer analgésico, mais ou menos forte. Se porém esta é uma situação que passou a normal, não há motivos para panicar, o peito humano é resistente. Em última instância, a morte é o destino inevitável de cada humano e pode acontecer por qualquer causa, incluindo a rutura torácica (sarcasticamente falando). De facto, quantos são os animais humanos que vivem com um grampo tipo-C aplicado no peito e nem sequer percebem que estão assim? E até são esses mesmos que quando vêem alguém como a franzina menininha da figura acima não fazem nada mais do que pensarem, com ar de pena acentuada no rosto, “coitadinha, gostaria de poder ajudá-la”! É, nós humanos somos ridículos, não somos?

Tenho para mim que o ideal na vida é mesmo optar por ser alguém tipo “deixa pra lá” alternando, de forma inteligente e/ou esperta, com a atitude do alguém tipo “bora lá tratar disto, antes que chova”. Neste caso, a morte continua a ser o destino inevitável mas não será por rutura torácica. Entendido? Não? É que não nascemos para suportar todos os problemas do mundo ou, apenas que seja, todos os problemas do nosso círculo social. É fundamental fazermos uma gestão equilibrada do que é ou não é um problema que nos compete resolver. Difícil, não é? Sim, para muita gente isto é tão difícil como gerir o seu próprio tempo. Sim, de facto, uma parte considerável de pessoas não consegue gerir a sua vida de forma equilibrada. Digamos que não consegue definir em tempo útil quando deve ou não deve entrar no modo “deixa pra lá”. São os homens e as mulheres das aflições constantes. Dos dramas frequentes. As vítimas da ansiedade que, não me canso de repetir, mata. Lentamente. As vítimas do burnout[7]. Há solução para estes seres? Pontualmente sim mas em geral não, muitas são as pessoas que vivem uma vida sob contínuo stress. Que as desgasta. Que as envelhece precocemente. Que as torna seres que se transformam em verdadeiros desafios à nossa paciência. Com estas, a solução para não sermos contagiados passa por evitá-las ou…

Deixa pra lá…

Tema musical: “Let It Be” por Beatles in “Let It Be” © 1970
Vídeo-clip: oficial dos Beatles com legendas em português por zebarbosaf.
Imagem frontal: cortesia de Getty Images.

  1. Parte da expressão em língua francesa “laissez faire, laissez aller, laissez passer” que significa literalmente “deixai fazer, deixai ir, deixai passar” e faz parte da doutrina política “liberalismo económico”. A expressão acabou por se vulgarizar com o sentido de “deixa correr, não te preocupes”.
  2. Os Beatles estavam em processo de separação.
  3. Mary Patricia, faleceu como consequência de cancro na mama quando Paul tinha 14 anos de idade.
  4. De facto existe uma explicação médico-científica para o facto de emoções fortes causarem sensações físicas ao nível do tórax mas… Medicina não é a minha praia!
  5. Ferramenta similar à que se vê na imagem.
  6. Imaginemos que a sociedade é representada por uma frondosa e imponente árvore onde cada um de nós ocupa um espaço num dos seus ramos.
  7. Termo inglês muito utilizado durante e após a pandemia COVID-19 e que se refere ao Síndrome de burnout.

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