Mas… Não há pior que 2020? Claro que há, mas depende de quem fala. Este é apenas um ano com uma pandemia a associar-se aos muitos problemas que, nós tugas, temos desde há muito. Eu já tive anos piores e muita outra gente já também teve pior. Por isso, coisinhas fofas, aguentem os cavalos e deixem de ser lamechas…
A queixa mais frequente que ouço é “ai, não posso estar com os meus amigos a beber um caneco”. Xiça, como se o mais importante na vida fosse isso, beber um caneco com os amigos. Eu não estive lá mas 1939 a 1945 deve ter sido muito pior para muita gente[1] que quando se dirigia para o tasco da esquina para beber um caneco com os amigos se arriscava a levar com uma bomba em cima. Ou de 1918 a 1920[2]. E os Sírios de 2011 até hoje[3]? Coitados, deve ser difícil para eles irem beber um copo com os amigos. Concordo, já morreu muita gente por causa da covid-19, cerca de um milhão e duzentos mil pessoas em todo o mundo, é muita gente. Certo, mas seriam muitas mais se não fosse a determinação política de muitos governos por esse mundo fora. E ainda bem que existe essa determinação para contrariar o senso comum e a imbecilidade instalados…
Interpretações diversas…
De facto, o principal problema resultante desta pandemia é que expôs toda a merdite que reveste muita gente chique por esse mundo fora. O verniz estalou. A cosmética deslizou pelos rostos abaixo. Afinal não somos feitos de esmalte. Somos apenas como os anéis de pobre, uma qualquer liga barata revestida com uma fina película de ouro. Desde que brilhe ficamos logo a acreditar que somos estrelas, não é? Mas a pandemia está, curiosamente, a mostrar que afinal somos pó que voltará a ser pó, cinzas que voltarão a ser cinzas, nada que voltará a ser nada…
Não é uma caraterística unicamente lusitana este estado de espírito em que
Quero quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem não conheci
Estou bem aonde não estou
Porque eu só quero ir aonde eu não vou
De facto, é um estado de espírito humano, bem humano, bem intrínseco. Nós humanos somos coisas complicadas. Complexas e complicadas. E por isso o que se vai vendo por aí é a prova cabal de que descemos muito baixo por tão alto querermos subir. E subimos tão alto e nos sentimos tão lá em cima que quase imaginamos estarmos com um pé no Olimpo onde pelos vistos só entram os deuses. E de repente chegou um bichinho ínfimo, coisa tão insignificante, tão invisível e tão sem aquela aparência que todos queremos ter para sentirmos que somos tão mais que os outros, tão deus. Bichinho esse com uma aparência tão sem nada que interesse mas contudo capaz de mobilizar e intimidar biliões de criaturas auto-levitadas à dimensão de seres superiores…
Muitos de nós não resistirão. Empresas a falir. Desemprego. Suicídio. Mais violência doméstica. Fome. Miséria. Discórdia. Amizades corrompidas. Amores destruídos. Enfim, o resultado de uma pandemia a alastrar por aí e a pôr à prova o ser superior a que nós, humanos, nos auto-proclamamos. No meio disto tudo espero sobreviver. Mas só se puder estar calmamente sentado em casa como estou agora a dissertar sobre a ascensão e queda do império de cada um dos desmedidamente ambiciosos transeúntes desta vida sem sentido. Se puder estar a refletir, enquanto bebo um Nespresso em chávena pré-aquecida, sobre os sacrifícios de guerra tão justificados por ilustres senhores da guerra que os faz aceitar com naturalidade que dez milhões morram para salvar cem milhões.
E se por malfadada sorte eu for um dos velhotes apanhados na teia, que aconteça o que tem de acontecer, o “earth to earth, ashes to ashes, dust to dust” e assim seja feita a vontade dos deuses. Os que conseguirem resistir á COVID-19, claro…